Conteúdo Médico: Papel do teste ergométrico na avaliação pré-operatória de cirurgia não cardíaca

O teste ergométrico (prova de esforço) é um dos exames mais conhecidos e difundidos na prática cardiológica há mais de cem anos, com importante papel no diagnóstico e na avaliação de condições clínicas, na reprodução e na correlação de sintomas ao exercício, na avaliação da capacidade física e das terapêuticas instituídas e ainda como instrumento para a avaliação prognóstica dos pacientes. No Brasil, caracteriza-se como um recurso de fácil execução, não oneroso e amplamente disseminado, podendo ser aplicado isoladamente ou combinado com outras técnicas, como a análise dos gases respiratórios (ergoespirometria) e de imagens (ecocardiograma de esforço e cintilografia de perfusão miocárdica)1. Configura-se, portanto, como um exame acessível a boa parte de nossa população e, dessa maneira, entra também na avaliação pré-operatória de pacientes que serão submetidos a procedimento cardíacos ou não.

Estima-se que ocorram atualmente no Brasil cerca de 3 milhões de procedimentos cirúrgicos ao ano, com uma taxa de mortalidade ao redor de 2,7%2. A morbidade e a mortalidade observadas nas cirurgias decorrem, em boa parte, das complicações cardiovasculares relacionadas à isquemia miocárdica, principalmente nas intervenções vasculares de aorta e ramos. Contribuem ainda para essa situação o desenvolvimento tecnológico de técnicas cirúrgicas e anestésicas continuadas e a longevidade da população, o que permite que pacientes mais idosos e com mais morbidades sejam submetidos à realização de cirurgias, com aumento do risco de complicações3. Assim, torna-se cada vez mais necessária a realização de avaliação pré-operatória de risco cirúrgico pormenorizada para a população idosa.

A avaliação pré-operatória cardiológica baseia-se na estratificação de risco cardiovascular pré-procedimento, reconhecendo o paciente como uma pessoa com maiores chances de desenvolver complicações cardiovasculares durante o período pré-operatório. Isso é feito por avaliação clínica com anamnese, exame físico e testes complementares apropriados e utilizados com critério e aplicação de escores de risco e índices como os de Goldman, Destsky, American College of Physician, Lee e Emapo, entre outros4. Além de estimar o risco cardiovascular, a avaliação pré-operatória cardiológica visa à compensação da doença de base, à otimização de fármacos para o tratamento, ao delineamento de procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos antes da cirurgia e ainda à orientação de práticas e cuidados necessários para o paciente em particular, de maneira individualizada, durante o período perioperatório.4

A indicação de exames subsidiários no contexto da avaliação pré-operatória também apresenta aspecto pormenorizado e pessoal para cada paciente, necessitando considerar suas comorbidades e doenças cardíacas prévias e existentes, bem como o tipo e o porte da cirurgia. Esses aspectos ajudam a estimar o risco intrínseco intraoperatório de eventos cardiovasculares (morte e infarto não fatal), o qual, para cirurgias não cardíacas, pode ser categorizado conforme a tabela 15 :


Tabela 1 – Classificação de risco cardiovascular intrínseco conforme procedimento cirúrgico

CATEGORIA

PROCEDIMENTO

RISCO CARDÍACO (%)

 

Alto

Cirurgias vasculares arteriais de aorta e vasculares periféricas
Cirurgias de urgência ou emergência

 

≥5

 

 

 

Intermediário

Endarterectomia de carótida e correção endovascular de aneurisma de aorta abdominal
Cirurgia de cabeça e pescoço.
Cirurgias intraperitoneais e intratorácicas Cirurgias ortopédicas
Cirurgias prostáticas

 

 

 

1-5

 

 

Baixo

Procedimentos endoscópicos
Procedimentos superficiais
Cirurgia de catarata
Cirurgia de mama
Cirurgia ambulatorial

 

 

<1

Modificado de: Fischer et al.


O teste ergométrico se baseia no uso de protocolos determinados, que são aplicados por meio da realização de exercício físico em um ergômetro – no Brasil, sobretudo esteira ou bicicleta –, com o objetivo geral de submeter o indivíduo a um estresse físico programado e personalizado para avaliar as respostas clínicas, hemodinâmicas, eletrocardiográficas e metabólicas obtidas durante e após o esforço. Tais respostas correspondem, em resumo, à avaliação global do sistema cardiovascular diante do estresse físico6. Em nosso país, os protocolos em esteira mais utilizados são os de Ellestad, Bruce, Bruce modificado e de rampa7.

No contexto do uso da ergometria na avaliação pré-operatória analisada por diversos estudos desde a década de 1980 até a atualidade, destacam-se, como variáveis passíveis de avaliação, a pesquisa de doença arterial coronariana (DAC), a ocorrência de arritmias ventriculares complexas esforço-induzidas, o comportamento da pressão arterial e da frequência cardíaca diante do esforço e a análise objetiva da capacidade física7.

A pesquisa, a detecção e a avaliação de DAC (conhecida ou não) representam a maior parte das indicações do teste ergométrico na atualidade8, que apresenta sensibilidade de 68% e especificidade de 77% para essa finalidade. A detecção de isquemia miocárdica durante o exame decorre do desbalanço entre oferta de oxigênio e demanda, gerando alterações eletrocardiográficas, clínicas e hemodinâmicas no decorrer da prova. Contudo, na fisiopatologia do infarto perioperatório, nota-se que este difere em parte do infarto espontâneo e habitual: apenas metade dos casos dá-se por ruptura de placa, enquanto o restante acontece em consequência da diminuição da oferta de sangue para o miocárdio por anemia aguda e perda de fluidos e por aumento do consumo gerado por taquicardia e hipertensão arterial.

Há racionalidade na hipótese de que o teste ergométrico poderia detectar os pacientes com risco cardiovascular intraoperatório pela detecção de anormalidades durante o exame. Mas não é o que se observa na prática – em pacientes com baixa probabilidade pré-teste de DAC, o valor preditivo positivo para detecção diminui. Ou seja, para indivíduos de baixo risco pela avaliação clínica, o teste ergométrico não traria benefícios adicionais. Por outro lado, naqueles indivíduos que irão se submeter a procedimentos vasculares, com risco cardiovascular moderado e alto e, ainda, portadores de três ou mais fatores de risco, há benefício da realização do exame, com diminuição da mortalidade hospitalar em um ano9. Assim, o perfil do melhor uso do teste de esforço na avaliação pré-operatória de cirurgia não cardíaca é o indivíduo assintomático, portador de fatores de risco e com alto risco cirúrgico, no qual, portanto, o método tem capacidade de mudar prognóstico, orientar terapêutica agressiva e intervenções de revascularização miocárdica pré-cirúrgicas9.

A presença de doença arterial multiarterial grave e de alto risco cardiovascular pode ser observada se o teste ergométrico encontrarx:

  • Carga de trabalho total realizado menor que 6 MET
  • Deficit cronotrópico na ausência do uso de inotrópicos negativos
  • Pressão arterial sistêmica final <120 mmHg
  • Queda intraesforço ou manutenção de platô fixo da pressão arterial durante o exame
  • Presença de infradesnível do segmento ST ≥2,0 mm, de morfologia horizontal ou descendente (figura 1), com surgimento precoce e em baixa carga, que acometa mais de cinco derivações e tenha duração de cinco minutos durante a fase de recuperação
  • Presença de supradesnível ST em área não infartada
  • Indução de angina pectoris em baixa carga de exercício realizado
  • Presença de taquicardia ventricular sustentada


Figura 1Aspectos do infradesnível do segmento ST, aferidos no ponto Y (que dista 80 ms do ponto J) e encontrados num teste positivo: ascendente lento (>1,5 mm), convexo (>2,0 mm), horizontal (>1,0 mm) e descendente (ponto J, infradesnível a 1,0 mm ou mais)


Na avaliação de arritmias pelo teste ergométrico em pré-operatórios, merecem atenção as desencadeadas pelo esforço ou logo após este, que se acompanham de sintomas como palpitações, lipotimias, síncopes e equivalentes, arritmias ventriculares complexas que ocorram em portadores de risco moderado e alto para DAC e portadores de síndromes genéticas, como taquicardia ventricular catecolaminérgica e síndrome de Brugada, entre outros. Dentro desse aspecto, destaca-se a ocorrência de maior ectopia ventricular durante a fase de recuperação, a despeito da fase de esforço, que se correlaciona com maior chance de DAC, ocorrência de infradesnível ST e maior risco cardiovascular10,11 .

A resposta pressórica durante a prova de esforço é habitualmente usada para predição do risco do desenvolvimento de hipertensão arterial futura ou mesmo mortalidade cardiovascular aumentada e avaliação da terapêutica empregada12. Assim, sua avaliação durante a prova de esforço no contexto do pré-operatório pode indicar a necessidade de compensação da doença de base ou otimização terapêutica antes do procedimento cirúrgico em si, diante de curvas pressóricas com comportamento de hipertensão fixa ou resposta hipertensiva exagerada. Quedas da pressão arterial sistêmica (PAS) >10 mmHg intraesforço ou comportamento em platô podem indicar lesão coronariana grave ou componente obstrutivo (estenose aórtica, miocardiopatia hipertrófica) e conferem pior prognóstico clínico13. Para pacientes não hipertensos, considera-se anormal a elevação da PAS acima de 210 mmHg em homens, acima de 190 mmHg em mulheres, bem como a variação entre o repouso e o pico superior a 100 mmHg. Para a pressão arterial distólica (PAD), elevações maiores que 10-15 mmHg são reportadas como respostas alteradas.

Quando se realiza a análise do comportamento da frequência cardíaca durante o teste ergométrico, os achados que se relacionam com a maior mortalidade cardiovascular, mesmo em indivíduos considerados assintomáticos, são a incompetência cronotrópica, a queda intraesforço da frequência cardíaca (evento raro) e a recuperação considerada anormal dos batimentos na fase de recuperação14. Na avaliação pré-operatória, o encontro desses achados deve implicar uma investigação cardiológica mais detalhada.

Uma variável que constitui importante instrumento prognóstico é a capacidade funcional. Apesar da recomendação de fazer sua aferição pela ergoespirometria como melhor prática, por meio da medida direta do consumo de oxigênio máximo (VO2 máx), é possível estimá-la de maneira razoável por equações. A capacidade funcional durante a prova de esforço é avaliada no decorrer da ergometria pela quantificação do número de MET realizado. Um MET (sigla para equivalente metabólico) representa o consumo de 3,5 ml/kg.min de oxigênio em situação basal e de repouso. Já o esforço realizado é mensurado em múltiplos da unidade basal. Conforme a intensidade do protocolo escolhido, cada etapa pode corresponder a uma quantidade maior ou menor de MET. De maneira bem simplificada, cada minuto realizado do protocolo de Bruce corresponde a um MET. Uma forma de escolha do protocolo a empregar baseia-se no grau de atividade física rotineira do paciente (tabela 2):


Tabela 2 – Valores de MET despendidos conforme a atividade física

1 MET

Deitado e sentado, ver TV, digitar, falar ao telefone

2 MET

Lavar e passar roupas, andar pequenas distâncias

3 MET

Lavar um carro, limpar garagem, carregar crianças de 7 kg

4 MET

Varrer garagem, andar de bicicleta

5 MET

Caminhar carregando peso em subidas

6 MET

Fazer faxina, caminhar em ritmo rápido

7 MET

Jogar futebol casual, correr ou nadar devagar

8 MET

Correr a 8,3 km/h

9 MET

Jogar futebol competitivo

10 MET

Correr a 11 km/h

11 MET

Praticar ciclismo estacionário ou com esforço vigoroso, pular corda

12 MET

Correr a 13 km/h


Conforme a literatura apontou em diversos estudos prévios, sabe-se que uma baixa capacidade física durante o teste ergométrico (<4-5 MET) correlaciona-se com a presença de DAC grave e maior mortalidade cardiovascular. Em análises de pacientes submetidos a cirurgias não cardíacas, a realização de carga superior a 5 MET durante a prova de esforço correspondeu a bom prognóstico perioperatório15.

Nos últimos anos, tem-se considerado o uso do teste cardiopulmonar para uma análise mais fidedigna do consumo de oxigênio e melhor acurácia para avaliação da capacidade física no escopo da avaliação pré-operatória de cirurgias cardíacas e não cardíacas.

De maneira geral, o teste ergométrico na avaliação pré-operatória de cirurgias não cardíacas, quando indicado de maneira apropriada, fornece importantes informações diagnósticas e prognósticas que ajudam o médico-assistente na orientação e no manejo perioperatório de seus pacientes com maior segurança.


BIBLIOGRAFIA

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13/01/21

13 de janeiro de 2021

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