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Exames, vacinas e maisO que é a febre maculosa?
A febre maculosa é uma zoonose causada por bactérias do gênero Rickettsia, transmitidas aos seres humanos através da picada de carrapatos infectados, a partir de animais domésticos e silvestres. Tanto a bactéria quanto seus vetores ocorrem praticamente em todo o mundo; no Brasil, as áreas endêmicas estão presentes nas regiões Sul e Sudeste, e os casos se concentram no Centro-Sul de São Paulo e Nordeste de Santa Catarina. Foram confirmados, em média, 180 casos por ano no País, segundo a série histórica dos últimos 15 anos.
Como é transmitida?
As espécies de Rickettsia causadoras das infecções registradas no Brasil são R. rickettsii – mais frequente, de distribuição mais ampla (tipicamente no Cerrado) e responsável pelos casos mais graves – e R. parkeri, limitada a áreas de Mata Atlântica, originando menor número de casos, que raramente evoluem com gravidade. Os vetores envolvidos na transmissão são carrapatos do gênero Amblyomma, sendo A. sculptum – ou carrapato-estrela – a mais importante delas, transmissora da R. rickettsii. Animais como cavalos e capivaras mantêm as populações de carrapatos na natureza, e o ser humano é um hospedeiro acidental, que não tem participação na amplificação da circulação dessas bactérias. Desse modo, o risco de contágio ocorre quando indivíduos se expõem a picadas de carrapatos durante atividades ocupacionais ou recreacionais em áreas rurais das regiões endêmicas, com destaque para aquelas realizadas às margens de rios ou lagos, devido ao risco aumentado de exposição de carrapatos que estiveram parasitando capivaras. A transmissão ao ser humano é mais provável quando o carrapato permanece aderido ao indivíduo, por pelo menos quatro horas.
Vale ressaltar que a maioria dos casos se concentra nos meses de junho a novembro, período em que há maior população de carrapatos em seu estágio de ninfa, o mais propenso a picar seres humanos e, por seu pequeno tamanho, com maior probabilidade de não serem percebidos durante o parasitismo. Adultos também podem picar, mas são maiores e a picada é mais dolorida, o que os torna mais perceptíveis. As ninfas não só ficam sobre a vegetação, alcançando hospedeiros que se deslocam sobre ela, mas também de locomovem ativamente em direção a um hospedeiro que está parado, atraídas pela emissão de CO2, podendo percorrer mais de um metro em poucos minutos. Áreas de matas ciliares, pastos crescidos e solo coberto por folhas secas são particularmente mais propícias à infestação por essas espécies. Os carrapatos permanecem infectados durante toda a vida, transmitindo as rickettsias de um estágio evolutivo para outro, para outros adultos através da cópula e para sua prole por via transovariana.
A transmissão peridomiciliar urbana, relacionada a vetores que parasitam cães e gatos, é mais rara, mas pode acontecer. Geralmente ocorre em ambientes em que esses animais têm livre acesso a áreas de vegetação ou ao contato com animais silvestres, de onde vêm parasitados com carrapatos, principalmente em locais de transição com fragmentos de Mata Atlântica. Nesses casos, a sazonalidade é menos demarcada.
Quais são os sintomas?
Clinicamente, trata-se de uma doença febril aguda de início súbito, quase sempre caracterizada pela presença de exantema (manchas no corpo), que pode se manifestar desde formas leves com evolução benigna, até quadros graves ictero-hemorrágicos com alta letalidade. O período de incubação varia entre 2 e 14 dias e, nos casos provocados por R. rickettsii, a evolução costuma ser rápida, grave e com alta letalidade, podendo alcançar 50%.
Os sintomas iniciais são inespecíficos, como febre, prostração, mialgia (dor muscular), cefaleia (dor de cabeça) intensa, artralgia (dor nas juntas), náusea e vômitos. Nessa fase, é comum outras hipóteses diagnósticas, como dengue e outras viroses, principalmente se os dados epidemiológicos não são investigados ou informados adequadamente. Entre o terceiro e o quinto dia, é frequente o surgimento de exantema (manchas no corpo), inicialmente maculopapular (manchas avermelhadas), que começa nas extremidades e progride em direção ao tronco e à face. Com a evolução, podem surgir petéquias, e coalescência em equimoses e sufusões hemorrágicas (manchas roxas) nos casos mais graves.
As manifestações graves costumam se apresentar após o quinto dia de doença. Instalam-se insuficiência renal, insuficiência respiratória, manifestações neurológicas, hemorragias (epistaxe, gengivorragia, hematúria, enterorragia, hemoptise e sangramento no sistema nervoso central), icterícia, arritmias cardíacas e alterações hemodinâmicas (hipotensão e choque). Além da patogenicidade da espécie de Rickettsia, o principal determinante do prognóstico do paciente é o início precoce do tratamento com antibióticos adequados. Sendo assim, na suspeita de febre maculosa, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, e não deve ser postergado em função da coleta ou resultados de exames.
Como detectar?
O diagnóstico laboratorial se baseia em exames específicos para a bactéria. O padrão-ouro é a sorologia, com pesquisa de anticorpos da classe IgM e IgG, preferencialmente por imunofluorescência indireta (IFI), que apresenta sensibilidade analítica em torno de 100% e especificidade entre 86%-100%. Os anticorpos são detectáveis por este método em torno de 7 a 10 dias após o início dos sintomas, entretanto, é recomendada a coleta da primeira amostra logo no momento da suspeita, independentemente do tempo de evolução, para interpretação pareada com outra amostra colhida entre 14 e 21 dias depois. A presença de IgM, embora corrobore a hipótese de infecção recente, deve ser interpretada com cautela devido à menor especificidade (possibilidade de resultados falso-positivos), sendo importante verificar a soroconversão (de não reagente para 1/128) ou o aumento da IgG em pelo menos quatro vezes (Ex: de 1/64 para 1/256). Recomenda-se que ambas as amostras sejam processadas no mesmo laboratório.
As técnicas moleculares (PCR) para detecção direta do DNA da rickettsia podem ser realizadas na primeira semana de doença a partir de amostras de sangue, soro ou pele (biopsia do exantema ou da escara de inoculação), mas ainda têm disponibilidade restrita, sendo recomendadas apenas para casos graves e óbitos, quando é obrigatório o envio de amostras para confirmação em laboratórios públicos de referência. Nos casos graves, a técnica tem alta sensibilidade, pois a bacteremia é mais intensa, assim como a liberação do DNA das bactérias intracelulares na corrente sanguínea.
O tratamento:
O tratamento é feito com antibióticos: a doxiciclina é considerada a droga de escolha, e deve ser introduzida precocemente. Pacientes que não requerem hospitalização devem ser avaliados diariamente, devido ao risco de agravamento súbito. Conforme as orientações do Ministério da Saúde, não se recomenda o uso profilático (preventivo) de antibióticos para indivíduos com história de exposição e/ou picada de carrapatos, ainda que tenha ocorrido em áreas sabidamente de transmissão da doença. Tampouco é recomendada a realização de sorologia em pessoas assintomáticas. Os potencialmente expostos devem ser orientados sobre os sintomas da doença, e a procurar atendimento imediatamente caso apresente febre, com ou sem outros sintomas, informando a exposição. Se o risco de exposição for muito alto, como em situações de surto, o monitoramento diário pode ser indicado.
A febre maculosa é uma doença de notificação compulsória e imediata, ainda na suspeita. A ocorrência de casos deve suscitar a investigação do provável local de infecção, as medidas ambientais aplicáveis ao local, a restrição de acesso de outras pessoas e a orientação dos possíveis expostos quanto os sintomas da doença. Três casos em uma região, sobretudo com suspeita de fonte comum, já configuram surto. Considerando que a erradicação dos carrapatos de seus ecossistemas é inviável, as medidas de prevenção mais efetivas se baseiam em evitar o contato com os carrapatos e seus hospedeiros, a sinalização e a restrição de acesso aos locais de alto risco de transmissão, a vigilância de infestação em animais domésticos, a busca de carrapatos no corpo após uma atividade propícia à aquisição do parasita, e a orientação da população quanto aos riscos de transmissão, sintomas e gravidade da doença.